Obs: Há SPOILERS sobre Cassino Royale aqui, mas acredito que todos já tenham visto o filme a esta altura.
Tem início a projeção de 007 – Cassino Royale, vigésimo-primeiro longa do agente secreto James Bond, e o espectador fã do personagem percebe uma série de fatores incomuns dentro dos pradrões da franquia. Primeiro, a ausência da tradicional vinheta do “cano da arma” como abertura do longa e segundo, a presença de um visual em preto-e-branco. É assim que o diretor Martin Campbell apresenta ao mundo Daniel Craig no papel do espião mais famoso do Cinema.
Bond Noir: O agente é apresentado em preto-e-branco
Bond ainda não é um “00” quando o encontramos, ele ainda precisa cometer dois assassinatos para ser promovido a tal status e, consequentemente, ganhar sua licença para matar. O uso do preto-e-branco não é apenas um mero artíficio para acentuar a atmosfera sombria que permeia a cena – que traz o espião encurralando um traidor do MI6 em seu escritório – mas também uma sutil maneira de mostrar ao público que James Bond ainda não é “James Bond”. O preto-e-branco e seus tons de cinza imediatamente nos remetem ao antigo, ao passado e aqui não deve ser confundido com um mero flashback, e sim um prólogo. Iluminada com eficiência por Phil Meheux, é conferida à cena um belo visual noir, que casa perfeitamente com a situação que o roteiro de Neal Purvis, Robert Wade e Paul Haggis vai explicitando.
O primeiro assassinato de Bond
Bruscamente, a cena muda e acompanhamos Bond cometendo seu primeiro assassinato. Uma violenta luta em um banheiro toma conta da tela e, assim, conhecemos a capacidade do personagem para a brutalidade. Reparem que, mesmo mantendo o preto-e-branco, a cena apresenta uma granulação forte e suja, contrastando com as elegantes sombras do diálogo anterior. Uma oposição que não se limita apenas à fotografia, mas que contribui imensamente na mise em scène de Campbell: o primeiro assassinato é descontrolado e selvagem, quase mal feito (eis a granulação e a câmera intensa do diretor), ao passo que o segundo é um serviço executado com profissionalismo e limpeza, traços que são manifestados tanto pela paleta mais “suave” de Meheux, quanto pela câmera que se mantém mais estável (não podendo me esquecer também da música de David Arnold, que varia sua intensidade de acordo com a cena específica).
Bond elimina o traidor Dryden com um tiro silenciado, já o contato deste é vítima de uma morte “nada bonita”. Eis que surge em Cassino Royale um elemento interessantíssimo que se extenderá durante boa parte do longa (e também se apresentará em sua sequência, Quantum of Solace): Bond afoga o sujeito em uma pia.
A sexy Solange: primeira vítima do “Bond-Viúva-Negra”
Chega a ser irônico como o afogamento perseguirá o personagem de James Bond, especialmente no que diz respeito a seus múltiplos interesses amorosos/sexuais. A começar com a bela Solange (Caterina Murino), esposa de um criminoso que Bond persegue nas Bahamas. Após uma noite de carícias, a moça surge morta numa praia e a causa de seu óbito é – mesmo que nunca fique muito claro – o afogamento. Mesmo que não tenha sido dessa forma, ela definitivamente foi encontrada no mar, tendo areia e algas em seu corpo para sustentar essa ideia. Mas tudo bem, porque Solange foi uma mera fonte para Bond, e quem de fato faz a cabeça do protagonista é a analista Vesper Lynd (Eva Green).
James se apaixona perdidamente por Vesper ao longo da missão central do longa, mas como você (que assistiu ao filme, claro) bem sabe, as coisas não dão certo para o casal, e Lynd acaba por traí-lo ao revelar-se associada de uma outra organização. E após uma tensa perseguição por Veneza, Vesper aceita seu destino e morre afogada – apesar das tentativas de Bond de salvá-la.
Vesper e Bond na linda cena do chuveiro
Não deixa de ser curioso também, que o primeiro momento (real) de intimidade entre Bond e Vesper seja na cena do chuveiro, quando a moça está perturbada por presenciar um assassinato pelas mãos de 007, e senta-se no chuveiro em uma tentativa (metafórica) de se limpar daquela situação assustadora. Mesmo já visando o suicídio ao se jogar na água durante o clímax do filme, pode-se dizer que Vesper tentava – mais uma vez – uma limpeza da situação.
Voltemos à primeira cena do filme, quando 007 já cometeu seus dois assassinatos. Apesar de minha teoria acima, há um elemento que poderia destruí-la: o sujeito afogado acorda, e Bond rapidamente se vira e “inaugura” o cano da arma, baleando seu oponente. Então, para manter a teoria de pé (e a Sétima Arte, maravilhosa como é, permite múltiplas interpretações de um fato) vejo a presença da vinheta como algo puramente estilístico (sem menosprezá-la, porque adoro a nova colocação desta), então o capanga desta cena morreu de fato, afogado por Bond.
O sangue vermelho traz, enfim, cores ao filme
E pra finalizar, Bond se torna Bond após esse cano da arma, realizando seus dois assassinatos e conseguindo seu status de 007. O sangue vermelho, que traz cores ao filme pela primeira vez, auxilia na conclusão dessa metamorfose.