Archive for the Críticas de 2016 Category

| Carol | Crítica

Posted in Cinema, Críticas de 2016, Drama, Romance on 31 de maio de 2020 by Lucas Nascimento
Rooney Mara em mais um romance glacial

Algumas histórias simplesmente não poderiam ser contadas no século passado. Ainda é considerado um tabu, mas histórias de amor homossexual vão ganhando cada vez mais espaço no cinema contemporâneo, incluindo o americano. Lentamente as histórias do passado vão tornando-se populares, e o romance Carol é o novo longa do gênero, que o diretor Todd Haynes oferece em uma embalagem digna.

Adaptada do livro semi-autobiográfico The Price of Salt de Patricia Highsmith trama é ambientada no período do Natal de 1952, onde encontramos a jovem Therese Belivet (Rooney Mara), uma aspirante a fotógrafa que trabalha como atendente em uma loja de departamentos. No furor caótico do período de compras, conhece Carol Aird (Cate Blanchett), uma mãe rica e casada com o influente Harge (Kyle Chandler). Um romance escondido entre as duas rapidamente se inicia, ao mesmo tempo em que o marido as persegue.

Não é uma premissa que grita originalidade, mas realmente não há como se ir tão longe na criação de uma história de amor, apenas na forma como é contada. O roteiro de Phyllis Nagy não toma muitas ousadias no desenrolar de sua narrativa, optando por uma condução majoritariamente linear e um foco constante nas relações entre os personagens. Therese tem todo um subtexto de indecisão profissional e emocional, já que encontra-se pressionada com o pedido de casamento súbito de seu namorado e um desejo de realizar arte. Já Carol enfrenta um doloroso processo de divórcio e uma disputa pela guarda de sua filha pequena, Rindy (vivida pelas gêmeas Sadie e  Kk Heim).

São subtramas sólidas e que oferecem uma aproximação forte entre as protagonistas, o que nos leva ao óbvio trunfo da produção: Cate Blanchett e Rooney Mara. Todas as cenas de diálogo entre as duas são fascinantes, principalmente pela química entre as duas até a condução absolutamente sensorial de Todd Haynes. Blanchett assume uma postura muito mais segura e madura durante as cenas com Mara, evidenciando ali sua idade mais avançada, mas é comovente vê-la se quebrando com a ameaça de perder a custódia de sua filha – imediatamente vilanizando o personagem de Kyle Chandler, mas ao analisar de perto encontramos uma insegurança significativa.

Mas é mesmo Rooney Mara quem tem o trabalho mais difícil, justamente pelo fato de ser a personagem mais complexa. Sua grande confusão com o mundo é bem clara com o olhar quase perdido da personagem em cenas de multidão ou com seu complicado namorado; vide a cena em que tenta perguntar a ele se acredita no amor entre duas pessoas do mesmo sexo, imediatamente negando quando este pergunta se o caso se aplicaria a ela. Porém, tudo desaparece ao contracenar com Blanchett. Therese torna-se ali uma mulher madura e que vai descobrindo o que é a vida e o amor, fazendo com que Mara cresça também.

O que nos leva ao sensível estilo de Haynes, um diretor muito inteligente. Na primeira conversa informal entre as duas, em um almoço, seu posicionamento de câmera é certeiro para traduzir visualmente o contraste entre as personagens: numa posição superior econômica (e até emocional, dada sua experiência que é constantemente posta contra à da amante), o plano de Carol é ligeiramente mais alto do que a de Therese, que parece melhor distribuída no contra plano. É revelador vermos uma sutil inversão, no momento em que Carol volta atrás em uma determinada situação, trazendo-a agora em um evidente plano plongée enquanto fala ao telefone com Therese; e esta, enquadrada normalmente do outro lado da linha.

Vale apontar como o olho do diretor é muito interessado em pequenos detalhes. Quando Carol dirige para Therese pela primeira vez, o olhar da jovem foca-se nos dedos da companheira no volante, nos pelos de seu carregado casaco de peles e no vermelho do batom em seus lábios carnudos. A trilha sonora predominantemente focada em piano e flauta fornece o toque perfeito para cenas do tipo, no qual uma química borbulhante entre as duas vai lentamente evoluindo.

O longa também merece aplausos pela genuína recriação do período e a imersão atmosférica que provoca no espectador. A começar pela fotografia de Ed Lachman, que opta por rodar o filme em película 16mm, conferindo assim um grão muito mais evidente, mas que torna-se perfeito quando consideramos não só a época, mas a paixão de Therese pela fotografia; não poderia imaginar este filme tendo o mesmo impacto com cinematografia digital, mesmo preferindo o formato. A tonalidade das cores, sempre pendendo para algo frio e não muito forte também destacam o inverno e o frio da temporada natalina, o que faz sentido quando pensamos na expressão “Christmas Carol”. A imagem de Mara vista através de um vidro de carro embaçado é uma das mais belas.

O design de produção de Judy Becker revela-se econômico, mas bem sucedido na fidelidade ao período e ao serviço narrativo. A loja de departamentos onde Therese trabalha, por exemplo, é um ambiente claustrofóbico que só piora com o grande número de pessoas e também os enquadramentos de Haynes, sempre posicionando a câmera atrás de algum cômodo ou em cantos de tela, como quando vemos Therese arrumando uma prateleira de bonecas ou a visão periférica de uma chegada que acontece pelo banco de trás de um carro.

Carol pode não oferecer algo muito original ou revolucionário em o que poderia ser descrito como mais uma história de amor, mas é feito e executado com maestria e muita elegância, além de conter duas ótimas performances centrais.

| Steve Jobs | Crítica

Posted in Críticas de 2016, Drama with tags , , on 13 de dezembro de 2019 by Lucas Nascimento


O homem que mudou o jogo: Michael Fassbender é o fundador da Apple

Mas de novo? Essa é a reação quase que unânime diante deste Steve Jobs, novo filme sobre a vida do icônico fundador da Apple, falecido em vítima do câncer em 2011. Depois de uma biografia mediana com Ashton Kutcher e diversos documentários obcecados em reformular a imagem de Jobs (que de gênio de informática não tinha muito, um fato absoluto), chega a vez do roteirista Aaron Sorkin dar sua versão em um biopic diferente de qualquer outro longa do gênero.

Desinteressado em contar a história de Jobs (vivido aqui por Michael Fassbender) do início ao fim, Sorkin aposta em uma estrutura que se espelha mais no teatro do que no cinema: são três atos diferentes, cada um centrado nos bastidores do lançamento de algum produto. No caso, o Macintosh em 1984, o NEXT em 1988 e o iMac em 1998.

Essa decisão ousada transforma Steve Jobs em uma experiência verborrágica e diferente, já que uma grande quantidade de informações e exposição sobre fatos passados será constantemente debatida. Mesmo que tenhamos alguns flashbacks ocasionais (incluindo uma cena na garagem real de Jobs) para traçar bons paralelos com o presente, tudo é explicado verbalmente. Desde o funcionamento dos produtos até a gerência de Jobs na Apple e, principalmente, sua conturbada relação com Chrisann Brennan (Katherine Waterston) e sua filha Lisa, a qual ele recusa insistentemente a paternidade.

Normalmente, tanta exposição é um pesadelo cinematográfico. Felizmente, Aaron Sorkin é o melhor roteirista trabalhando em Hollywood no momento. Saído dos roteiros magníficos de A Rede Social e O Homem que Mudou o Jogo (que assinou ao lado de outro monstro, Steven Zaillian), Sorkin é simplesmente um mestre na arte de diálogos. Na escolha de palavras, analogias e tiradas cômicas, tudo funciona como uma sinfonia verborrágica da melhor qualidade, e a arrogância de Jobs é perfeita para que o roteirista traga discussões onde ouvimos frases como “Não está funcionando? Você teve três semanas para consertar isso. O Universo foi construído em um 1/3 desse tempo” ou “Deus mandou seu filho único em uma missão suicida, e todos gostamos dele porque nos deu árvores”. É uma prosa tão detalhada e repleta de nuances que até a melhor das legendas em português terá dificuldades em capturar e adaptar todas elas apropriadamente.

A questão da paternidade talvez seja o elemento mais fundamental da trama. A pequena Lisa (vivida por Makenzie Ross, Ripley Soboe a brasileira Perla Haney-Jardineem diferentes períodos) tem participações pontuais em todos os três atos, muitas vezes escondida atrás de portas ou mobílias. É uma rejeição gigantesca e uma relação peculiar a de Jobs com a suposta filha, mas é fascinante ver como a relação dos dois vai se transformando consideravelmente, até porque Sorkin confere diálogos espirituosos até mesmo às jovens atrizes. É só no ato final, porém, que a maior catarse emocional atinge como um trem-bala à toda velocidade. “Fui mal construído”, desabafa Jobs.

É um roteiro perfeito, do tipo que merece ser estudado minuciosamente por estudantes da área. Por isso, o que impedeSteve Jobsde se tornar um novo clássico americano é a incompatibilidade do texto com a direção deDanny Boyle. Dono de um estilo visual marcante e agressivo, é até aliviante vê-lo muito mais contido do que costuma ser (basta lembrar-nos da fúria visual em Quem Quer ser um Milionário? ou o surtado Em Transe), adotando uma câmera leve e que acompanha os incontroláveis personagens em travellingsconstantes, até chegando a manter a câmera fixa durante alguns diálogos – o que é ótimo. Porém, Boyle aposta em alguns maneirismos visuais que acabam por roubar a atenção e tornar-se algo mais caótico; vide a cena em que Jobs usa a história do lançamento do foguete Skylab como alegoria, e vemos imagens de arquivo do mesmo magicamente na parede às suas costas ou até mesmo a quantidade de planos holandeses sem a menor função narrativa.

A ferocidade de uma discussão entre Jobs e John Sculley (Jeff Daniels) acaba confusa no contra-fogo de uma montagem paralela muito mal posicionada, onde o embate verbal dos dois é entrecortado com flashbacks – com mais diálogos – do dia fatídico que levou à inimizade dos dois. Mesmo que ambos os atores estejam fantásticos, a condução de Boyle é desastrosa, quase sacrificando a compreensão dos eventos diante dessa gritante falta de foco, também afetada pelo excesso de trilha sonora no momento (ainda que seja do fantásticoDaniel Pemberton). É uma simples questão de dosagem.

A fotografia de Alwin H. Küchler, no entanto, se mostra uma ideia mais certeira. Com a divisão de três períodos temporais, Küchler aposta no uso de formatos diferentes para cada porção da história: o Macintosh é rodado em película 16mm, o NEXT em 35mm e o iMac enfim alcança a cinematografia digital (mesmo que seja uma decisão factualmente imprecisa, já que a técnica digital só seria bem aprimorada em 2002). Logo na primeira cena o impacto é forte, já que o grão forte dos 16mm nos revela a “sujeira” e caos por trás do lançamento de uma empresa tão notória por design e a estética clean.

Da mesma forma, o aspecto teatral de Sorkin evoca uma grandiloquência que acaba refletida no design de produção, situado todo em bastidores, palcos, salões de orquestra e camarins, o que reforça a ideia de todos ali serem artistas e até atores (até vemos Jobs retocando maquiagem em certo momento). É quase como olhar pelo ponto de vista do próprio Jobs, já que dificilmente uma platéia ficaria tão extasiante a ponto de fazer o tremer o chão com um simples anúncio tecnológico.

O que nos leva ao elenco, que certamente sofreu nas sessões de ensaio para decorar e interpretar toda a metralhadora verborrágica de Sorkin. A começar pelo sensacional Michael Fassbender, cujo Jobs está em praticamente em todas as cenas do longa, fazendo com que o ator carregue tudo nas costas. Uma tarefa que Fassbender realiza excepcionalmente, conseguindo capturar o sentimento de superioridade e quase como se suas realizações fossem dignas do Monte Olímpio, como observamos em seu trabalho vocal que oscila magicamente entre pedante e ameaçador ou os gestos no qual parece saudar a todos sua presença; em um momento, até simula a pose de um maestro, tema de um dos diálogos mais memoráveis.

Coadjuvante no melhor sentido da palavra,Kate Winslet dá vida a Joanna Hoffman, a diretora de marketing da Apple. E como Jobs era um aficionado em design, não é de se imaginar que a incansável assistente vá de ajustar propriedades na exibição de um projetor até uma cruzada de última hora atrás de uma camisa que atenda às exigências de Jobs. Winslet se sai muito bem, por também revelar um apego emocional quase que maternal diante de seu chefe, sendo a bússola moral que aponta para o conserto da situação Lisa. Sem falar que a atriz adota um discretíssimo sotaque polonês.

Por fim, temos Seth Rogen, Jeff Daniels e Michael Stuhlbarg em bons papéis menores. O comediante famoso pelas comédias stoner se sai incrivelmente bem na pele de Steve Wozniack, amigo íntimo de Jobs e o verdadeiro cérebro por trás da criação do Apple II. Não só o senso de humor está presente de forma bem contida, mas a performance de Rogen deixa bem claro que o sujeito parece borbulhar por dentro, mas não o faz em consideração a seu amigo. “Estou cansado de ser o Ringo, quando claramente sou o John”, confronta Woz, em uma divertida analogia aos Beatles.

Daniels traz mais intensidade à mesa, na pele de John Sculley, especialmente em uma calorosa discussão com seu antigo colega. É revelador analisar também como Sculley claramente se arrepende do “término” dos dois, mostrando que ali residia uma boa amizade. Por fim, Stuhlbarg revela uma importância inesperada de seu engenheiro Andy (qual deles? Hertzfeld) no último ato, enfim justificando sua quase-onipresência ao longo da projeção.

Steve Jobs é um ótimo filme, e traz um dos roteiros mais refinados que o cinema americano já viu nos últimos anos. Por esse motivo, é um tanto frustrante que a odisseia de Aaron Sorkin chegue tão perto de tocar o céu, ficando perto de tornar-se uma obra-prima.

Afogo-me em lágrimas ao imaginar como seria a realidade alternativa utópica em que David Fincher imaginou ao assumir, em determinado ponto, a direção do projeto.

| Spotlight: Segredos Revelados | Crítica

Posted in Cinema, Críticas de 2016, Drama with tags , , , , , , , , , , , on 8 de janeiro de 2016 by Lucas Nascimento

 

4.5

Spotlight
Esquadrão Suicida: a ousada equipe Spotlight do Boston Globe

A união de jornalismo com cinema costuma render resultados memoráveis. De Cidadão Kane à Montanha dos Sete Abutres, e então longas mais modernos como Intrigas de Estado e Zodíaco, a primeira gaveta simbólica que se abre na mente das pessoas ao pensar nessa união de estilos é o clássico Todos os Homens do Presidente, filme de Alan J. Pakula sobre o escândalo de Watergate. É também o primeiro filme que me vem à mente após o término da sessão de Spotlight: Segredos Revelados, que pode ser considerado o equivalente desta geração ao suspense de Dustin Hoffman e Robert Redford.

Baseado nos eventos reais de Setembro de 2001, a trama gira em torno da equipe de redação “Spotlight” do jornal Boston Globe, especializado em matérias investigativas. O caso da vez centra-se na exposição dos diversos abusos sexuais cometidos por cardeais da Igreja Católica e o acobertamento destes pela instituição e até mesmo grupos de advogados.

Sendo uma história verídica, a necessidade de retratar os eventos com veracidade torna-se uma preocupação real para os realizadores. É exatamente o que vemos no filme de Tom McCarthy (o mesmo diretor de… Trocando os Pés. Juro. Sério.), adotando uma direção discreta e escrava de seu roteiro factual e pautado no realismo, seja no desenrolar da história repleto de detalhes e informações até os diálogos que tentam resumi-los. A prosa de Josh Singer e do próprio McCarthy aposta pouco em dramatizações ou frases de efeito, conseguindo prender a atenção do espectador com a força de sua história e o clima de mistério/insatisfação que permeia a cada nova pista encontrada pela equipe.

E que equipe, convenhamos. Em uma perfeita distribuição de personagens, fica muito evidente que não temos um protagonista central no longa. Toda a equipe funciona como um organismo vivo e pensante, o que faz sentido a decisão da Sony em inscrever todo o elenco como coadjuvante. De cara, pessoalmente achei que Mark Ruffalo se sobressaiu, tendo a difícil tarefa de elaborar um sotaque português que não soasse caricatural para seu Mike Rezendes, além de ter os maiores surtos emocionais diante da injustiça do caso, rendendo ótimos momentos para o ator.

Michael Keaton empresta sua postura de veterano para Robby Robinson, o chefe da redação de Spotlight. Com muita eficiência na performance de Keaton, percebemos como a determinação de Robby vai pensa muito à frente da de Mike, por exemplo. O colega mais novo grita para que as novas evidências sejam publicadas imediatamente, mas Robby insiste para que coletem evidências ainda mais fortes que sejam capazes de denunciar todo o sistema, ao invés de casos isolados. Não só uma atitude de um grande líder, mas fica ainda mais interessante ao descobrirmos uma camada mais complexa que o personagem vinha ocultando desde o início.

Ainda temos Rachel McAdams entregando mais uma atuação decente como Sacha Pfeiffer, mesmo que a atriz continue presa a uma performance de uma nota só que se estende por seus trabalhos mais recentes. Stanley Tucci aparece pouco, mas é tempo o suficiente para que seu Mitchell Garabedian seja visto como uma figura de início repreensível, mas que revela-se mais importante e útil do que esperado. Liev Schreiber tem ainda menos tempo de tela como Marty Baron, o jornalista que entrega a tarefa para a Spotlight, mas impressiona por seu misto de autoridade, profissionalismo e respeito pelos companheiros (“Vocês merecem uma pausa, mesmo. Mas segunda feira de manhã, precisarei de todos aqui”, é uma de suas melhores entregas).

Novamente, não é um longa que se deixa levar por inovações visuais ou artifícios que poderíamos chamar de “cinematográficos”. A fotografia de Masanobu Takayanagi aposta em uma paleta fria e sem muitos invencionismo, com raras exceções. Há um plano longo muito bem executado e posicionado para a cena em que Matt Carroll (o ótimo Brian d’Arcy James) descobre que um dos padres acusados reside a apenas alguns metros de sua própria casa, ou a sequência de passagem de tempo que aposta em um coral natalino de crianças de igreja; uma escolha brilhante que revela não só o período no qual a trama vai avançado, mas a ironia cruel de sua melodia dócil. Aliás, a trilha sonora discreta de Howard Shore confere o clima perfeito para a projeção, apostando fortemente numa composição simples e eficaz de piano.

Spotlight: Segredos Revelados é um filme que valoriza e respeita o papel do jornalismo investigativo, devendo servir como inspiração para estudantes da área. Mesmo não ousando em questões audiovisuais, é uma narrativa forte e que mantém o espectador vidrado, saindo da sessão com a mesma sensação de injustiçado de seus protagonistas.

Por mais que a tinta e o papel tenham sido armas poderosas, a situação horrenda é uma batalha longe de ser vencida.

| Os Oito Odiados | Crítica

Posted in Cinema, Comédia, Críticas de 2016, Drama with tags , , , , , , , , , , , , on 1 de janeiro de 2016 by Lucas Nascimento

4.0

h8
Jennifer Jason Leigh é Daisy Domergue: a mais suja entre mal lavados

Filmes de Quentin Tarantino são praticamente um evento cinematográfico. O diretor e roteirista certamente tem ciência disso, afinal durante os créditos iniciais somos alertados de que trata-se de seu “oitavo filme”, o que não deixa de ser uma ironia que trata-se de algo batizado como Os Oito Odiados. Novamente se aventurando no faroeste, após o bem-sucedido Django Livre, Tarantino demonstra maturidade e surpreende, ainda que longe da perfeição.

A trama se passa uns dois anos após a Guerra Civil americana, no final dos anos 1800. Em uma forte nevasca, o caçador de recompensas Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) é acolhido por outro colega de profissão, John Ruth “O Carrasco” (Kurt Russell), que leva acorrentado consigo a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) para ser enforcada na cidade mais próxima. Em decorrência do clima opressor, eles são forçados a ser refugiar em uma estalagem, onde também residem Chris Mannix (Walton Goggins), o novo xerife de Red Rock, o carrasco Oswaldo Mobray (Tim Roth), o mexicano Bob (Demián Bichir), o confederado Sandy Smithers (Bruce Dern) e o vaqueiro Joe Gage (Michael Madsen).

Pelo estabelecimento da trama em um único local, e uma série de intrigas criadas entre seus personagens, é bem evidente que a premissa de Os Oito Odiados se aproxima bastante da do primeiro filme de Tarantino, Cães de Aluguel. Claro, com um orçamento maior e ambições maiores, a trama do faroeste é muito mais complexa e interessante do que vemos à primeira vista. À medida em que passam os capítulos da divisão habitual de Tarantino, descobrimos mais detalhes sobre o passado dos jogadores e o real contexto da história. É muito divertido como  a atmosfera da trama remete bastante a um jogo de tabuleiro, como Detetive, quando descobrimos que alguém ali pode ou não ter intenções letais.

O elenco é fantástico nesse quesito. Em mais uma colaboração com Tarantino, Samuel L. Jackson demonstra muita segurança e experiência na pele de um veterano de guerra, e um medo muito bem mascarado: “Você não sabe como é ser um negro nos EUA”, alerta Warris, que também mostra-se sombrio e perigoso; seu desempenho ao relatar um certo evento para o personagem de Bruce Dern é fabuloso, assim como a reação do veterano ator. Tim Roth e Michael Madsen eram dois atores que não davam as caras em um filme do diretor há um tempo, e se saem muito bem. Roth acerta em sua postura cortês e no sotaque britânico carregado (em muitas maneiras, ele preenche os sapatos de Christoph Waltz), enquanto Madsen mantém seu estilo misterioso e “cool”.

Kurt Russell também retoma a parceria após À Prova de Morte, fazendo de Ruth um sujeito extremamente escandaloso e paranóico, já que toma todas as medidas possíveis para garantir que ninguém lhe passe a perna na captura de Domergue (basta nos lembrarmos que ele está ACORRENTADO a ela). Mas é mesmo Jennifer Jason Leigh quem rouba a cena. Ainda que não fique claro no começo, ela é a personagem quem mais merece o título de “odiado” do título, jamais perdendo força ou charme, mesmo sendo esmurrada e estapeada por Russell durante quase toda a projeção. Suja até os pés de sangue e com os dentes quebrados, o discurso que a protagonista durante o último ato deve se destacar como um dos melhores momentos da carreira de Tarantino.

Para seu segundo faroeste, Tarantino apostou pesado. Aliado ao diretor de fotografia Robert Richardson, rodou o longa em película Ultra 70 mm, que permite uma razão de aspecto mais extensa e, assim, uma visão de campo muito mais estreita e vasta horizontalmente. As paisagens geladas de montanhas de neve ganham muito com o formato, que também revela-se curioso pela decisão de Tarantino de manter a trama toda em um único espaço. Visualmente, garante muito mais detalhes e ainda valoriza o trabalho do designer de produção de Richard L. Johnson na criação da estalagem, cuja decoração e objetos de cena revelam-se essenciais para algumas das pistas descobertas pelos personagens. A trilha sonora original de Ennio Morricone é outra valiosa adição, que ajuda o espectador a imergir em um clima de mistério e antecipação, dando pouco espaço para uma trilha sonora incidental pop (há apenas uma ocasião, com White Stripes).

Talvez o único problema seja o ritmo. Com quase 3 horas de duração, percebe-se que muito poderia ser reduzido se o montador Fred Raskin fosse mais habilidoso. Depois do “interlúdio” que separa o longa (que é inserido no melhor momento possível, palmas), o ritmo torna-se perigosamente lento, incluindo aí um capítulo em flashback que acaba se alongando muito mais do que o necessário. A conclusão também nos traz um Tarantino mais tímido, mas agrada pela quase inédita preocupação em abordar uma questão social relevante da história dos EUA.

Os Oito Odiados é mais um acerto para Quentin Tarantino, que realiza aqui um de seus experimentos mais maduros e desafiadores. Não atinge a perfeição de seus trabalhos anteriores, mas merece créditos pelo excepcional elenco reunido aqui.

Obs: Será um desafio para as salas de cinema conseguirem projetar com perfeição a película. Boa sorte.